“Fernando Pessoa em flagrante delitro“ (Dedicatória de F.P. a Ophélia, 1929) - Foto de autoria desconhecida.
Por J. L. Rocha do Nascimento
UM TARÂNTULA NO NINHO DOS POETAS
Peço uma cerveja. Quente. Só tem copo descartável, diz o
garçom com aura de poeta. No primeiro gole, desisto. Peço um uísque. Não tem
gelo, diz o barman, agora com mais aura de garçom do que de poeta. Fazer o quê?
Bebo de um gole só. Puro álcool. Outro cavalo paraguaio, eu peço. O garçom, com
o olhar de reprovação e postura de proprietário do estabelecimento, diz que
estou enganado, o uísque é legítimo, selado, e que se eu quiser tenho que
comprar a ficha antes. Não esquenta, cavalo paraguaio é um poema que estou
trabalhando.
BR-3, o nome da banda, toca Voodoo Child. O vocalista
anuncia que o microfone está à disposição de todos. Os bardos fazem fila,
começam a declamar. O rio é o mote. Uma poetisa com os cabelos desgrenhados
agarra o microfone e eu temo pela sua sorte. Gesticulando-se de forma
desordenada, tal com uma aranha peçonhenta bêbada, tentáculos para todos os
lados, as pernas parecendo duas palafitas movendo-se em areia movediça. Começa
a berrar: preciso urgentemente fazer um poema sobre o rio de minha cidade. Na
estrofe seguinte, troca a cidade pela aldeia. O pobre do guitarrista faz
malabarismos para acompanhar o ritmo ora estridente ora sonolento. Repete os
mesmos versos até cansar. Ao final, joga o microfone para um dos lados e se
despede diante de efusivos aplausos. Dirige-se a uma mesa, onde lhe aguarda um
grupo animado de jovens, um deles escreve um poema num rolo de folhas duplas de
papel higiênico. No meio do caminho ela arranca um copo de cerveja das mãos de
um, que apenas olha. Mais à frente, tropeça numa garrafa jogada pelo chão,
quase cai, mas consegue sentar-se num banquinho de madeira e grita: garçom,
mais uma, que eu preciso escrever urgentemente um poema sobre o rio da minha
cidade.
Já vou pra quarta dose. E parece que ganhei a simpatia do
garçom-poeta. Mandou comprar um pacote de gelo e água de coco, mas me fez
prometer que tomaria pelo menos mais 03 doses.
O tempo passa. Os poetas continuam se revezando. O tema de
sempre. Tem um que canta a beleza do rio coberto de aguapés. Ainda bem que não
tem nenhum ambientalista por perto. Deixem o rio em paz, resmungo. Peço uma caneta e um pedaço de papel e
escrevo:
Cavalo paraguaio
Deus!, Deus!, por que me persegues?
Por que não me dissestes que eu nasceria para a morte?
Por que me destes um coração fraco?
Por que tenho que me deitar neste leito de Procusto?
Meu Deus! Isso não é um poema, é um pedido de socorro,
reflito. E o que é que o dna do cavalo tem a ver com a ira divina, com a frágil
condição humana? Nunca vou ser um poeta, concluo desolado.
A oitava dose eu tomo com gelo e água de coco. O dono do
bar, poeta nas horas vagas como ele mesmo diz, e dublê de garçom aos finais de
semana, agora é um poço sem fundo de sorrisos para comigo. Também, conseguiu
recuperar o investimento e já tá no lucro.
Lá pelas tantas, me faz um convite. Quer que escrevamos um
poema a quatro mãos. Lisonjeado, agradeço e gentilmente recuso. Percebo que não
gostou e insiste. Apelo para o seu instinto patrimonialista e digo-lhe que
ainda tenho reserva para mais duas doses, desde que ele guarde segredo do que
vou dizer e não se ofenda. Pode falar, ele diz. Não sou poeta, sou contista,
digo baixinho, olhando firme nos seus olhos, certificando-me, antes, de que não
há ninguém por perto. A reação foi imediata. Deu dois passos para trás, quase
cai. Seus olhos cospem fogo. Por um momento pensei que ele iria acionar os
seguranças ou resolver a parada com as próprias mãos. Comecei a suar frio. À
minha volta, pareceu-me que todos me olhavam com ar de rejeição. Deve ser o efeito
do cavalo paraguaio, pensei.
De repente, para minha surpresa, meu interlocutor
interrompe-me os devaneios, dizendo: tudo bem, você é um bom cliente. Sirvo-te
mais duas doses, sem gelo e sem água de coco, mas com uma condição: nunca mais
me volte aqui, entendeu?
Ao final da décima dose, me sentindo um estranho no ninho,
saí dali como entrei, sem ser notado, e decidido a escrever este conto.
*Texto publicado no blog Confraria Tarântula - domingo, 29 de julho de 2012.