1
A velha morava sozinha no Casarão. Era uma arquitetura barroca esquecida ou rejeitada pelos moradores da cidade. No final da rua principal, onde as pessoas não iam além. Só os meninos, a caça de passarinhos, andavam por aquele lugar abandonado: armazéns fechados, galpões e ferro velho, a antiga usina de luz. A paisagem sombria terminava nos escombros da velha fábrica de sapatos. Era o limite, então a gente voltava.
Quando a fábrica fechou, há mais de cinqüenta anos, a maioria das famílias ali, que dependia do emprego, arrumou suas coisas e foi embora. As que ficaram se obrigaram a buscar o sustento na terra, em pequenos hectares onde plantavam frutas, grãos e verduras; criavam ovelhas, porcos, algumas cabeças de boi e uma vaquinha para o leite nas manhãs. Em duas décadas a população ali já era comparada a do tempo da fábrica. Quatro ou cinco tratores já mecanizavam a produção de alguns agricultores, ex-sapateiros, que prosperavam e faziam crescer a cidadezinha. O governo, através de um intendente estranho, mandara construir uma escola e um posto de saúde, além de umas pracinhas. Depois chegaram o cinema, a televisão, antenas parabólicas, e agora computadores e internet. Mas eu preferia a cidade no tempo do cinema, dos filmes bang-bang, Django, Sartana, Clint Estwood e outros tiros certeiros. A história da velha antecede esse meu tempo de adolescente, e que também tem a ver com um tiro certeiro que encerrou a vida da família dela.
O nome dela era Elizabeth, como o da rainha. Quando jovem era a mais bonita da cidade, também devia ser a mais rica, pois o pai, Jesualdo Sapatilha, era o dono da fábrica que empregava a maioria das pessoas do lugar. Dizem que, quando menino, fora engraxate, depois aprendiz de sapateiro, passou a confeccionar sapatos a pedido dos clientes e foi quando alguém descobriu que ele tinha talento para estilista de sapatos femininos. Levaram-no para São Paulo e, quando voltou, dez anos depois, montou a fábrica de sapatos. Pequena e que crescia a medida que os modelos de seus sapatos femininos atravessavam estados e regiões. A fábrica dobrava impostos para a prefeitura, e Jesualdo logo tornou-se uma pessoa influente na nata social. O jovem e ambicioso empresário precisava da filha do prefeito como esposa, a não tão bela Corina, dez anos mais velha que ele, experiente, sensata, meiga. É dessa união que surge Elizabeth, filha única.
Boa professora e mãe, Corina. Mas Elizabeth, adolescente, tinha de se apaixonar por um rapaz empregado da fábrica. Encontros de casais, às escondidas, funcionam quando ela, a garota, não é filha de um homem que é o patrão de quase todos da cidade. Se bem que a mãe tentou acalmar a todos, costurou psicologia sobre comportamento adolescente, tentou conectar o tempo presente com a tradição do passado. Em vão. Jesualdo, tomado de fúria, perseguiu o empregado ousado.
Uma manhã, chovia fininho, no centro da praça, os dois jovens pareciam se despedir para sempre. Jesualdo apareceu num relâmpago para acelerar a despedida, ou o sempre. Um disparo de 38 foi abafado por um trovão. A bala atravessou o peito do infeliz e, de quebra, resvalou no olho esquerdo da moça, vasando-o.
Começa aí a decadência de Jesualdo Sapatilha. Do flagrante ao réu confesso. Uma trajetória dantesca onde todo o dinheiro acumulado de tantos anos de trabalho procurava equilibrar sua vida, seu mundo. Mas tudo ruía. A filha tentava suicídio e a mulher, Corina, enlouquecia. Jesualdo não esperou julgamento, enforcou-se na cadeia. A mulher doente e a filha tornavam-se herdeiras de uma fábrica de sapatos desgastada pelo tempo.
Elizabeth era a velha que morava no sobrado. Durante muito tempo ela usou uma venda no olho, devia parecer uma pirata. Antes de se enforcar, Jesualdo mandou chamar, ainda na cadeia, um ourives da cidade conhecido como Canabrava. Entregou-lhe uma pedra brilhante e o fez prometer que a lapidaria do tamanho do olho da filha, entregando a ela quando terminado o serviço.
-- Certo de que esquecerei sua dívida, Canabrava, do que sobrar da pedra, tome umas caninhas.
-- Com certeza, patrão!
Canabrava cumpriu o prometido, foi até o Casarão e, com muita insistência conseguiu entregar a mercadoria à dona. Elizabeth sabia que o pai havia de substituir seu olho estragado. Era uma peteca brilhante. Um dia, teve de ir ao banco, na cidade. Tirou a venda, encaixou a peteca no orifício onde era olho, colocou uns óculos escuros no rosto e foi. Arrependeu-se. Ela era muito tímida, as pessoas a olhavam curiosas. Voltou correndo para casa, certa de que nunca mais pisaria nas ruas da cidade.
2
No tempo que eu assistia filmes bang-bang, Cristina era minha vizinha e estudávamos a quinta série escolar. Todos os dias, à tarde, fazíamos o caminho da escola. Sempre quando eu assistia a um filme, eu gostava de contar para alguém as ações do filme do início ao fim. Cristina ouvia minhas narrativas dos filmes, parecia gostar.
-- Cristina, hoje tem uma fita boa de bangue-bangue, vamos?
-- Não, Marcelo, tem muito tiro, prefiro filmes românticos.
-- Românticos?!
Só depois de muito tempo é que fui realmente conhecer as mulheres.
Como ela não assistia, eu contava. Às vezes, eu parava na calçada do Casarão, sem perceber que estava na calçada daquela casa abominada pelo povo da cidade e, empolgado com a visão que trazia das telas, gesticulava imitando os personagens do filme, tentando impressionar a amiga que se limitava a falar: Deus me livre! E foi num desses dias, na calçada do Casarão, que ela, a velha, estava lá em cima, encostada na janela do sobrado me ouvindo. Quando terminei a narrativa, ouvimos a voz. Do alto a velha sorria para nós e elogiava o modo de eu contar histórias. Olhei para ela, assustado, ninguém nunca tinha ouvido sua voz. Cristina agarrou no meu braço. Aí eu falei.
-- Histórias?
-- Sim, rapazinho, é que você não olha para cima, pois todos os dias eu estou aqui escutando suas belas histórias. Tenho vontade de convidá-los para subir um pouquinho aqui e conversar sobre os filmes que vocês assistem...
Olhei para Cristina, que parou de me puxar o braço quando viu lágrimas nos olhos da velha.
-- A gente tá com sede, Cristina falou, se antecipando.
Foi a partir desse dia que ficamos amigos dela. A gente bebeu água e ela gentilmente foi respondendo perguntas que fazíamos de tantas coisas arrumadas dentro da casa antiga. Quadros, estátuas, espadas, brasões, e uma grande biblioteca que ficamos fascinados ao vê-la. E porque ela agia naturalmente, tentando controlar sua fala que há muito tempo não usava com ninguém, isso ela nos contou, e tantas eram historinhas curtas e divertidas que fez a gente sorrir bastante que prometemos voltar no dia seguinte.
Na volta para casa, tirei Cristina de um grupo de colegas. A gente precisava solucionar uma inconveniência naquela nova amizade: não devíamos contar para ninguém, pois a personagem era estranha demais para ser aceita socialmente. Perguntei a ela.
-- Você vai falar para sua mãe?
-- Falar o quê?
-- Da velha!
-- Deus me livre! Olha, vamos combinar o seguinte: não chamaremos mais ela de “velha”, ela é muito legal!
-- Lembrei de uma coisa: esquecemos de perguntar o nome dela.
-- Também não dissemos nossos nomes para ela.
Durante um ano a gente freqüentou a casa de Elisabeth, sem ninguém desconfiar de nossas ausências. Ela se dizia feliz porque afinal, e no final da vida, tinha encontrado os filhos que não tivera. Aprendemos muito, ela era uma verdadeira biblioteca ambulante. Um dia chegamos e ela estava lá na sua cadeira, livro no colo, o rosto sereno, sorridente. Estava morta. Dentro do livro uma folha de testamento e um saquinho com uma pedra brilhante em forma de peteca. Era o olho dela. Um diamante.
Hoje eu e Cristina moramos no Casarão. Temos dois filhos, Elizabethe e Romeu que é o mais danado. Vez em quando a Cristina dá por falta da peteca brilhante e corre desesperada até onde ele está jogando bola-de-gude com os colegas.
f wilson
A velha morava sozinha no Casarão. Era uma arquitetura barroca esquecida ou rejeitada pelos moradores da cidade. No final da rua principal, onde as pessoas não iam além. Só os meninos, a caça de passarinhos, andavam por aquele lugar abandonado: armazéns fechados, galpões e ferro velho, a antiga usina de luz. A paisagem sombria terminava nos escombros da velha fábrica de sapatos. Era o limite, então a gente voltava.
Quando a fábrica fechou, há mais de cinqüenta anos, a maioria das famílias ali, que dependia do emprego, arrumou suas coisas e foi embora. As que ficaram se obrigaram a buscar o sustento na terra, em pequenos hectares onde plantavam frutas, grãos e verduras; criavam ovelhas, porcos, algumas cabeças de boi e uma vaquinha para o leite nas manhãs. Em duas décadas a população ali já era comparada a do tempo da fábrica. Quatro ou cinco tratores já mecanizavam a produção de alguns agricultores, ex-sapateiros, que prosperavam e faziam crescer a cidadezinha. O governo, através de um intendente estranho, mandara construir uma escola e um posto de saúde, além de umas pracinhas. Depois chegaram o cinema, a televisão, antenas parabólicas, e agora computadores e internet. Mas eu preferia a cidade no tempo do cinema, dos filmes bang-bang, Django, Sartana, Clint Estwood e outros tiros certeiros. A história da velha antecede esse meu tempo de adolescente, e que também tem a ver com um tiro certeiro que encerrou a vida da família dela.
O nome dela era Elizabeth, como o da rainha. Quando jovem era a mais bonita da cidade, também devia ser a mais rica, pois o pai, Jesualdo Sapatilha, era o dono da fábrica que empregava a maioria das pessoas do lugar. Dizem que, quando menino, fora engraxate, depois aprendiz de sapateiro, passou a confeccionar sapatos a pedido dos clientes e foi quando alguém descobriu que ele tinha talento para estilista de sapatos femininos. Levaram-no para São Paulo e, quando voltou, dez anos depois, montou a fábrica de sapatos. Pequena e que crescia a medida que os modelos de seus sapatos femininos atravessavam estados e regiões. A fábrica dobrava impostos para a prefeitura, e Jesualdo logo tornou-se uma pessoa influente na nata social. O jovem e ambicioso empresário precisava da filha do prefeito como esposa, a não tão bela Corina, dez anos mais velha que ele, experiente, sensata, meiga. É dessa união que surge Elizabeth, filha única.
Boa professora e mãe, Corina. Mas Elizabeth, adolescente, tinha de se apaixonar por um rapaz empregado da fábrica. Encontros de casais, às escondidas, funcionam quando ela, a garota, não é filha de um homem que é o patrão de quase todos da cidade. Se bem que a mãe tentou acalmar a todos, costurou psicologia sobre comportamento adolescente, tentou conectar o tempo presente com a tradição do passado. Em vão. Jesualdo, tomado de fúria, perseguiu o empregado ousado.
Uma manhã, chovia fininho, no centro da praça, os dois jovens pareciam se despedir para sempre. Jesualdo apareceu num relâmpago para acelerar a despedida, ou o sempre. Um disparo de 38 foi abafado por um trovão. A bala atravessou o peito do infeliz e, de quebra, resvalou no olho esquerdo da moça, vasando-o.
Começa aí a decadência de Jesualdo Sapatilha. Do flagrante ao réu confesso. Uma trajetória dantesca onde todo o dinheiro acumulado de tantos anos de trabalho procurava equilibrar sua vida, seu mundo. Mas tudo ruía. A filha tentava suicídio e a mulher, Corina, enlouquecia. Jesualdo não esperou julgamento, enforcou-se na cadeia. A mulher doente e a filha tornavam-se herdeiras de uma fábrica de sapatos desgastada pelo tempo.
Elizabeth era a velha que morava no sobrado. Durante muito tempo ela usou uma venda no olho, devia parecer uma pirata. Antes de se enforcar, Jesualdo mandou chamar, ainda na cadeia, um ourives da cidade conhecido como Canabrava. Entregou-lhe uma pedra brilhante e o fez prometer que a lapidaria do tamanho do olho da filha, entregando a ela quando terminado o serviço.
-- Certo de que esquecerei sua dívida, Canabrava, do que sobrar da pedra, tome umas caninhas.
-- Com certeza, patrão!
Canabrava cumpriu o prometido, foi até o Casarão e, com muita insistência conseguiu entregar a mercadoria à dona. Elizabeth sabia que o pai havia de substituir seu olho estragado. Era uma peteca brilhante. Um dia, teve de ir ao banco, na cidade. Tirou a venda, encaixou a peteca no orifício onde era olho, colocou uns óculos escuros no rosto e foi. Arrependeu-se. Ela era muito tímida, as pessoas a olhavam curiosas. Voltou correndo para casa, certa de que nunca mais pisaria nas ruas da cidade.
2
No tempo que eu assistia filmes bang-bang, Cristina era minha vizinha e estudávamos a quinta série escolar. Todos os dias, à tarde, fazíamos o caminho da escola. Sempre quando eu assistia a um filme, eu gostava de contar para alguém as ações do filme do início ao fim. Cristina ouvia minhas narrativas dos filmes, parecia gostar.
-- Cristina, hoje tem uma fita boa de bangue-bangue, vamos?
-- Não, Marcelo, tem muito tiro, prefiro filmes românticos.
-- Românticos?!
Só depois de muito tempo é que fui realmente conhecer as mulheres.
Como ela não assistia, eu contava. Às vezes, eu parava na calçada do Casarão, sem perceber que estava na calçada daquela casa abominada pelo povo da cidade e, empolgado com a visão que trazia das telas, gesticulava imitando os personagens do filme, tentando impressionar a amiga que se limitava a falar: Deus me livre! E foi num desses dias, na calçada do Casarão, que ela, a velha, estava lá em cima, encostada na janela do sobrado me ouvindo. Quando terminei a narrativa, ouvimos a voz. Do alto a velha sorria para nós e elogiava o modo de eu contar histórias. Olhei para ela, assustado, ninguém nunca tinha ouvido sua voz. Cristina agarrou no meu braço. Aí eu falei.
-- Histórias?
-- Sim, rapazinho, é que você não olha para cima, pois todos os dias eu estou aqui escutando suas belas histórias. Tenho vontade de convidá-los para subir um pouquinho aqui e conversar sobre os filmes que vocês assistem...
Olhei para Cristina, que parou de me puxar o braço quando viu lágrimas nos olhos da velha.
-- A gente tá com sede, Cristina falou, se antecipando.
Foi a partir desse dia que ficamos amigos dela. A gente bebeu água e ela gentilmente foi respondendo perguntas que fazíamos de tantas coisas arrumadas dentro da casa antiga. Quadros, estátuas, espadas, brasões, e uma grande biblioteca que ficamos fascinados ao vê-la. E porque ela agia naturalmente, tentando controlar sua fala que há muito tempo não usava com ninguém, isso ela nos contou, e tantas eram historinhas curtas e divertidas que fez a gente sorrir bastante que prometemos voltar no dia seguinte.
Na volta para casa, tirei Cristina de um grupo de colegas. A gente precisava solucionar uma inconveniência naquela nova amizade: não devíamos contar para ninguém, pois a personagem era estranha demais para ser aceita socialmente. Perguntei a ela.
-- Você vai falar para sua mãe?
-- Falar o quê?
-- Da velha!
-- Deus me livre! Olha, vamos combinar o seguinte: não chamaremos mais ela de “velha”, ela é muito legal!
-- Lembrei de uma coisa: esquecemos de perguntar o nome dela.
-- Também não dissemos nossos nomes para ela.
Durante um ano a gente freqüentou a casa de Elisabeth, sem ninguém desconfiar de nossas ausências. Ela se dizia feliz porque afinal, e no final da vida, tinha encontrado os filhos que não tivera. Aprendemos muito, ela era uma verdadeira biblioteca ambulante. Um dia chegamos e ela estava lá na sua cadeira, livro no colo, o rosto sereno, sorridente. Estava morta. Dentro do livro uma folha de testamento e um saquinho com uma pedra brilhante em forma de peteca. Era o olho dela. Um diamante.
Hoje eu e Cristina moramos no Casarão. Temos dois filhos, Elizabethe e Romeu que é o mais danado. Vez em quando a Cristina dá por falta da peteca brilhante e corre desesperada até onde ele está jogando bola-de-gude com os colegas.
f wilson
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