Os cabelos de Clarice
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Clarice saiu do útero da mãe de cabelos longos. uma bebê cabeluda. A enfermeira cortou o excesso para que o corpinho rosado não fosse emaranhado.
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Era um cabelo louro. O mês de junho soprava o vento nos cabelos da menina e fios dourados voavam pelas ruas por onde ela corria. A pianista Aderalda, sua vizinha, recolhia os preciosos fios para marcar colunas de acordes nas páginas das partituras que ela trabalhava diariamente, numa sala onde um piano de dimensões colossais era o mais dramático oratório de uma devotada pianista da catedral Bach.
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Quando a velha pianista morreu, Clarice já tinha sete anos de idade. A casa e o piano ficaram abandonados na casa vizinha e ninguém ainda tinha se apresentado para reclamar o imóvel. A velha Aderalda terminara "moça-velha". Seu último - e parece que único na vida - companheiro, um maestro talentoso, cometera adultério com uma jovem pianista e fora assassinado pela esposa. Mas isso já se passara mais de quarenta anos.
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Quando Aderalda morreu, os cabelos de Clarice começaram a cair. A suave massa sonora que se expressava da vizinha e que alimentava a vida e paixão da menina deixara de existir. Clarice não mais cantava. Tampouco se importava com os fios de cabelos que se espalhavam pelo chão da casa. O vento agora era um canto instrumental monótono, fazia seu trabalho de limpeza: recolhia os fios caídos dos cabelos dela, Clarice.
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Na escola, passou a ser chamada de "menina carequinha". A mãe lhe comprou uma dúzia de bonés.
-- Seu cabelo vai voltar, Clarice, de fazer trança, como Rapunzel, dizia a mãe.
-- Quando, mamãe?
-- Quando você voltar a cantar.
Ela aninhava a menina nos braços e, com lágrimas, pedia a Deus que devolvesse os cabelos e a voz de Clarisse.
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-- Seu cabelo vai voltar, Clarice, de fazer trança, como Rapunzel, dizia a mãe.
-- Quando, mamãe?
-- Quando você voltar a cantar.
Ela aninhava a menina nos braços e, com lágrimas, pedia a Deus que devolvesse os cabelos e a voz de Clarisse.
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Numa manhã de domingo, era junho, Clarice acordou com uma música vinda de um pé de caju, no seu quintal. Vinha de um ninho de passarinhos. A música instrumental, a feliz sonoridade de faculdade universal de "dizer tudo, embora sem palavras".
Um passarinho ia e vinha, era o macho terminando de construir o ninho - com fios de cabelos, loiros. Clarice sentiu que o idioma musical minado em sua garganta explodia, podia acompanhar o canto dos pássaros, um estímulo que a liberou num impulso de arte, filosofia, religião...
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Um passarinho ia e vinha, era o macho terminando de construir o ninho - com fios de cabelos, loiros. Clarice sentiu que o idioma musical minado em sua garganta explodia, podia acompanhar o canto dos pássaros, um estímulo que a liberou num impulso de arte, filosofia, religião...
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Esperou o passarinho retornar de sua viagem, constante naqueles dias, da casa desabitada da pianista. Era um canário amarelo, formoso, parecia uma guitarra Fender. Algum tempo depois ele pousou na janela do teatro. Clarice dormia. Depositou fios de cabelos junto ao rosto dela no travesseiro e assoviou uma cantata de Bach. Depois abriu as asas de Deus, com suas penas amarelas, e massageou a carequinha de Clarice.
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F Wilson
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F Wilson
Um comentário:
Caro Professor, queira desculpar-nos o inconveniente que causamos pelo Post "Chopin. The 4 Scherzi Polonaise - Fantasie", de Claudio Arrau.
Por gentileza visite-nos novamente, fizemos algumas tentativas para solucionar o problema, o que conseguimos só em parte.
Congratulações pelo muito belo Site DITONGO POÉTICO e pelo sublime "Os Cabelos de Clarice"
por sinal, nome de minha filha caçula, o que muito me emocionou, mas, não só por isso!
Mais uma vez pedimos desculpas pelo transtorno.
Queira aceitar um forte abraço.
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