A longa tarde do vento quente
Outubro. A parada de ônibus mais quente do que a faixa no meio do asfalto, onde carros iam e vinham não sei de onde nem pra onde naquele colosso de calor. Qualquer sensatez humana ficaria em casa a aceitar o desafio de uma condução "circular" de ônibus à universidade, ufpi, onde eu cursava letras.
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Lembro que cheguei na sala de aula, não havia nenhum aluno ainda, nem professor. Cruzei os braços sobre a carteira, aninhei a cabeça neles e logo dormi.
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Lembro também da minha longa viagem com o sol. Primeiro eu entrei no ônibus. O motorista era velho, tinha olhos amarelos e brilhavem. Nunca vi olho de velho brilhar. O cobrador dormia no alto do caixa. Meti um vale estudantil no buraco do ouvido dele e empurrei a catraca numa engrenagem barulhenta que só fez esquentar mais ainda o calor. Quando levantei os olhos vi todas as cadeiras vazias. Sentei-me numa cadeira onde eu sabia que os solavancos jogaria o sol para o outro lado. Deu tempo de brir o livro do Chandler, no conto: "A longa noite do vento quente". O calor, o sono, a fadiga deviam de ter derrubado o livro longe. Entre o sono e o calor ouvi uma voz feminina, ao meu lado.
-- Tarde quente!
-- É, muito quente...
O vento quente, a sede, o sono, a janela pequena para se atirar ao suicídio no asfalto.
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O motorista solavancando marchas e mais marchas, acelerando fumaça, peidando ar-comprimido em cada parada que ninguém entrava, o sono, o calor insuportável.
-- Mas tá muito quente, não tá, não? Perguntava ela.
-- Insuportável, o calor.
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Na curva da Maranhão para a Av. Atonino Freire caí nos ombros dela e fechei os olhos, senti o vapor do desodorante que lubrificava o sovaco dela e me veio o sono mais pesado ainda. Quando a arquitetura de uma nuvem sombreou a cidade, parecia tudo ter se ressussitado. Eu apenas me arqueei, mecânicamente, de volta ao meu posto, alinhando-me na cadeira. Naquelas alturas sonolentas, acho que meu nariz beirava as coxas da moça que perguntou:
-- Calor horrível, não?
-- Muito calor danado, falei, idiotamente.
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Foi quando ela puxou o cordão ao alto pedindo parada. Deu para ver que era a parada do CCHL, da UFPI. Vi, com muita dificuldade, quando ela ajeitou a saia, arrumou os livros e se levantou. Eu com alguma consciência sabia que deveria descer nos blocos antigos da universidade.
-- Tarde quente, enhein...?
-- Muito quente, respondeu o besta.
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Há na via que dá acesso aos blocos antigos da universidade um balão fechadíssimo que carro só curva com vinte ou trinta quilômetros. O motorista do olho amarelo girou a direção como oitenta e eu caí lá onde o sol se sorria.
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Quando acordei, na sala de aula, o professor de português, Airton Sampaio, falava sobre a importância da comunicação, do canal da comunicação. "Alô?" - "Alô!".
E o professor, com exercício da prática literária, como exemplo, contava:
"Um sujeito idiota sentou na cadeira de um ônibus e uma garota belíssima sentou perto dele e falou só para testar o canal da comunicação:
-- Pôxa, como tá calor, não tá não?
--Tá um calor dos diabos!"
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Mais tarde, no antigo bar "Nós e Elis", eu bebia uma cerveja no balcão quando uma garota se aproximou. Não a vi, mas o cheiro era feminino, meu nariz não mente. A voz que pediu campari, a voz rouca de substância musical, me acendeu um sol de tantos que queimaram minha orelha nas janelinhas de ônibus de Teresina. Olhei para ela, estava com sorriso provocador, mas também de impossível. Reconheci o cabelo louro que o vento de outubro soprou dentro de um dia num dos malditos ônibus nas ruas de Teresina.
-- Dia quente, disse ela.
-- Muito quente, falei, otariamente.
Com gotinhas de suor sobre a ponta do nariz ela se desprezou de mim, no mais perdido aceno de adeus. Não seria um aceno de calor?
.
f wilson
"Um sujeito idiota sentou na cadeira de um ônibus e uma garota belíssima sentou perto dele e falou só para testar o canal da comunicação:
-- Pôxa, como tá calor, não tá não?
--Tá um calor dos diabos!"
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Mais tarde, no antigo bar "Nós e Elis", eu bebia uma cerveja no balcão quando uma garota se aproximou. Não a vi, mas o cheiro era feminino, meu nariz não mente. A voz que pediu campari, a voz rouca de substância musical, me acendeu um sol de tantos que queimaram minha orelha nas janelinhas de ônibus de Teresina. Olhei para ela, estava com sorriso provocador, mas também de impossível. Reconheci o cabelo louro que o vento de outubro soprou dentro de um dia num dos malditos ônibus nas ruas de Teresina.
-- Dia quente, disse ela.
-- Muito quente, falei, otariamente.
Com gotinhas de suor sobre a ponta do nariz ela se desprezou de mim, no mais perdido aceno de adeus. Não seria um aceno de calor?
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f wilson
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