sábado, 27 de setembro de 2008

Na sala de aula

A FLOR NA CALÇADA

A flor tinha nascido na calçada da escola, entre o meio-fio e o asfalto, dentro de uma rachadura coberta de lodo e alimentada pela água que corria no esgoto. Todos os dias, pela manhã, na entrada e na saída da escola, nós íamos conversar com ela, eu, o Juca e a Clarice. Aquelas visitas à flor eram discretas, só depois que os alunos tivessem entrado na escola e que a rua já estivesse razoavelmente normalizada de transeuntes e de pais de alunos com seus carros exibicionista-mal-educados.
Havíamos descoberto a flor uma semana atrás. A gente vinha caminhado e eu me agachei para ver melhor aquela carinha simpática, amarelada, pálida. Logo a Clarice ficou comovida.
-- O que você faz aí, criatura?
O caule era uma finura de dez centímetros de altura e se curvava ao peso das pétalas. Parecia quebrar-se a qualquer ventinho. Já se passava uma semana que a gente pensava na situação dela. Aí o Juca falou.
-- Ou a gente salva ela ou deixa aí morrer de vez.
-- Não fala assim, Juca, ela pode ouvir, disse Clarice.
-- Ela tá aumentando de tamanho, os adultos e os carros já podem enxergá-la, acho que não passa de amanhã. Juca terminou de falar e uma gota caiu de uma de suas pétalas.
-- Tá vendo...
-- Que coisa, florzinha, vai nascer logo aí! Eu disse e ela baixou a cabeça, não queria nos dar preocupação.
-- O portão vai fechar, vamos, na saída a gente resolve.

Na hora do recreio combinamos estratégias de proteção para a flor. Aquilo estava nos deixando encabulados. Que espécie de estudante era nós que não encontrava solução para o caso de uma florzinha no meio da rua?
-- O problema é justamente esse, disse o Juca, é ela ser uma florzinha. Ninguém vai entender nossa preocupação com uma zé ninguém.
-- Podemos protegê-la cercando-a com uma grade de madeira. Sugeriu Clarice.
-- A diretora vai alegar que atrapalha o trânsito e tira uma vaga de estacionar, falei, precisamos ser realistas.
-- Fazemos uma campanha em defesa da natureza, sensibilizamos alunos, professores, diretores, zeladores, todo mundo.
Falei que fazer esse tipo de propaganda era suicídio, os “malas” da escola seriam os primeiros a pisar na flor.
Quando bateu a campainha de saída o Juca nos reuniu para dizer que já tinha providenciado tudo. Ele arranjara um punção ( era um pedaço de ferro pontiagudo ) e um pequeno martelo. Era o único jeito. A gente ia esperar a rua esvaziar – tava uma sol de matar àquela hora de setembro em Teresina.
-- Quebro a beirada da calçada e tiramos a flor. Fazemos a muda enfiando ela no jardim da escola. Conversei escondido com Seu Manuel, o jardineiro, foi ele quem me emprestou os ferros, na condição de deixá-lo fora da história.
Concordamos e fomos correndo ansiosos pelos corredores da escola em direção à saída. Lá fora uma amontoado de gente, guardas de trânsito, professores e muitos curiosos em torno de um acidente.
Havia dois carros batidos. Na colisão um deles, todo amassado, subiu a calçada da escola e bateu o pára-choque na parede.
-- Ainda bem que ninguém saiu ferido, as pessoas falavam.
Olhamo-nos. Clarice baixou a cabeça, parecia chorar. O Juca enfiou a cara embaixo do carro.
-- Acabou, o pneu do carro a esmagou.
Vi o aceno do Juca indo para casa, depois a mãe de Clarice conduzindo-a para o carro. Fiquei mais um pouco ali acompanhado os homens empurrarem os carros para descongestionar o trânsito. O carro que estava na calçada estava sendo rebocado. A calçada ficou quase vazia.
Olhei o local da florzinha. Onde era verde do lodo estava vermelho da cor de sangue. Olhei mais de perto. Dava para ver um filete de líquido avermelhado escorrer pelo esgoto. Peguei a caneta bic da mochila, tirei a bombinha de tinta e recolhi o líquido que escorria. O canudinho da caneta ficou cheio. Tampei a extremidade com rolinho de papel. Olhei as poucas pessoas que ainda estavam no local. Ninguém ia dar atenção a uma menina futucando a calçada.
O jardim da escola ficava do outro lado e estava uma sombra agradável. Foi lá onde derramei o líquido da caneta. Depois fui andando para casa.
Na manhã do dia seguinte passei no jardim. Duas pequeninas flores amarelas brincavam no canteiro, quando acenaram e sorriram para mim.

Francisco Wilson

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