Tampas
Sempre tive problemas com tampas. Elas sempre escorregam das minhas mãos. Grandes, pequenas, de ferro, vidro ou de plástico sempre me dão trabalho. Já tentei conviver em harmonia com elas, colocando-as no buraco onde lhes cabe de fábrica. Mas não deu jeito, como crianças teimosas elas continuavam brincando comigo, escorregavam das minhas mãos e caíam nos mais indesejados lugares. Até chegar o dia que a tampa do perfume - era uma tampa bonita, como são as tampas de perfumes - me fez chegar atrasado no trabalho e o diretor da escola me reclamar, e nem adiantou eu dizer que a culpa tinha sido da tampa do perfume. O quê, tá gozando da minha cara? ele perguntou, e eu disse nada, deixa pra lá. Cheguei em casa nesse dia disposto a me vingar delas. Destampei panelas de comida, depósitos de alimento, creme para cabelo, creme de barbear, pasta de dentes. Até a tampa do vaso sanitário arranquei. Joguei tudo fora, no lixo. No outro dia de manhã, na calçada do prédio, vi o catador de lixo selecionando as de alumínio, acho que o peso do alumínio estava em alta, o coitado ia ganhar uma graninha boa. Fiquei satisfeito, pelo menos para isso as tampas serviam.
Mas isso já foi há algum tempo, antes da Amparo vir morar comigo, pois a primeira coisa que ela fez foi providenciar tampa para tudo. Quando ela chegou eu fiquei ali parado no meio da casa ouvindo ela reclamar como era que alguém podia morar numa casa sem tampa. E perguntava onde estavam as tampas das panelas. Joguei fora, respondi. Abriu a geladeira e eram garrafas dágua de boca aberta, manteiga ressecada dentro do pote, caixa de leite esburacada, copinhos de azeitona, de extrato de tomate, de doce de leite - tudo sem tampa. Pelo amor de Deus, como você consegue comer e beber isso sem tampa, onde você bota as tampas das coisas? Ela perguntou me encarando como um problema para o seu futuro ali. Jogo fora, falei.
Joga fora, joga fora. Por que jogar as tampas fora? tudo apodrece sem tampa, sabia? Onde não tem tampa tem baratas, ratos e outros bichos. E ela me olhou como se eu fosse um desses outros bichos.
Calma, falei, aqui não tem barata nem rato. É só um apartamento que não se adaptou à tampas. A empregada sempre coloca detergente nos cômodos onde os bichos costumam aparecer.
Tentei convencê-la de que as tampas alteravam meu comportamento. Algumas me deixavam constrangido, como as de alumínio que faziam um barulho desgraçado na queda, no choque com a cerâmica, o prédio inteiro ouvia, sabia que era eu, fazendo comida no almoço ou chegando de alguma festa na madrugada, com fome.
E as de plástico, não são inofensivas? Perguntou ela, irônica. E eu já estava arrependido da tampa que havia trazido para casa. Mas ela tinha uns cabelos negros e longos e lisos.
Continuei dizendo que outras me deixavam com raiva ou me atrasavam para o trabalho. A tampa do pote da margarina só caí pregada no chão, geralmente numa areinha trazida da rua pelo sapato. A da pasta de dentes sempre cai pelo ralo da pia, aí é um trabalho para desentupir a pia do banheiro. A tampa do perfume sempre me escorrega dos dedos e cai saltitando pelo quarto, indo se esconder lá debaixo da cama - uma vez, já com raiva fui buscá-la, rastejei buraco abaixo, dei umas três doloridas cabeçadas na grade de cima e voltei vitorioso, apesar da camisa e da calça amarrotadas e sujas.
Eu não fico em casa sem tampa! disse ela, virando as costas para mim, mulher manhosa.
Fazer o quê? Falei: Então - cheguei perto dela e mergulhei a venta nos seus cabelos - vamos colocar tampa nessa casa.
F Wilson
Sempre tive problemas com tampas. Elas sempre escorregam das minhas mãos. Grandes, pequenas, de ferro, vidro ou de plástico sempre me dão trabalho. Já tentei conviver em harmonia com elas, colocando-as no buraco onde lhes cabe de fábrica. Mas não deu jeito, como crianças teimosas elas continuavam brincando comigo, escorregavam das minhas mãos e caíam nos mais indesejados lugares. Até chegar o dia que a tampa do perfume - era uma tampa bonita, como são as tampas de perfumes - me fez chegar atrasado no trabalho e o diretor da escola me reclamar, e nem adiantou eu dizer que a culpa tinha sido da tampa do perfume. O quê, tá gozando da minha cara? ele perguntou, e eu disse nada, deixa pra lá. Cheguei em casa nesse dia disposto a me vingar delas. Destampei panelas de comida, depósitos de alimento, creme para cabelo, creme de barbear, pasta de dentes. Até a tampa do vaso sanitário arranquei. Joguei tudo fora, no lixo. No outro dia de manhã, na calçada do prédio, vi o catador de lixo selecionando as de alumínio, acho que o peso do alumínio estava em alta, o coitado ia ganhar uma graninha boa. Fiquei satisfeito, pelo menos para isso as tampas serviam.
Mas isso já foi há algum tempo, antes da Amparo vir morar comigo, pois a primeira coisa que ela fez foi providenciar tampa para tudo. Quando ela chegou eu fiquei ali parado no meio da casa ouvindo ela reclamar como era que alguém podia morar numa casa sem tampa. E perguntava onde estavam as tampas das panelas. Joguei fora, respondi. Abriu a geladeira e eram garrafas dágua de boca aberta, manteiga ressecada dentro do pote, caixa de leite esburacada, copinhos de azeitona, de extrato de tomate, de doce de leite - tudo sem tampa. Pelo amor de Deus, como você consegue comer e beber isso sem tampa, onde você bota as tampas das coisas? Ela perguntou me encarando como um problema para o seu futuro ali. Jogo fora, falei.
Joga fora, joga fora. Por que jogar as tampas fora? tudo apodrece sem tampa, sabia? Onde não tem tampa tem baratas, ratos e outros bichos. E ela me olhou como se eu fosse um desses outros bichos.
Calma, falei, aqui não tem barata nem rato. É só um apartamento que não se adaptou à tampas. A empregada sempre coloca detergente nos cômodos onde os bichos costumam aparecer.
Tentei convencê-la de que as tampas alteravam meu comportamento. Algumas me deixavam constrangido, como as de alumínio que faziam um barulho desgraçado na queda, no choque com a cerâmica, o prédio inteiro ouvia, sabia que era eu, fazendo comida no almoço ou chegando de alguma festa na madrugada, com fome.
E as de plástico, não são inofensivas? Perguntou ela, irônica. E eu já estava arrependido da tampa que havia trazido para casa. Mas ela tinha uns cabelos negros e longos e lisos.
Continuei dizendo que outras me deixavam com raiva ou me atrasavam para o trabalho. A tampa do pote da margarina só caí pregada no chão, geralmente numa areinha trazida da rua pelo sapato. A da pasta de dentes sempre cai pelo ralo da pia, aí é um trabalho para desentupir a pia do banheiro. A tampa do perfume sempre me escorrega dos dedos e cai saltitando pelo quarto, indo se esconder lá debaixo da cama - uma vez, já com raiva fui buscá-la, rastejei buraco abaixo, dei umas três doloridas cabeçadas na grade de cima e voltei vitorioso, apesar da camisa e da calça amarrotadas e sujas.
Eu não fico em casa sem tampa! disse ela, virando as costas para mim, mulher manhosa.
Fazer o quê? Falei: Então - cheguei perto dela e mergulhei a venta nos seus cabelos - vamos colocar tampa nessa casa.
F Wilson
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