sábado, 17 de julho de 2010

Cotidiano

(ilustração: google)

CIGARROS

Não sei bem como começou. Mas chegou a certo ponto do vício que eu só queria fumar cigarros importados, porque eram os melhores, eram fortes, cheirosos, sentia a brasa do cigarro sendo devorada pela tragédia do meu ser. Marlboro, John Player Special, Lucky Strike, Camel. Eram minhas marcas preferidas. Do Camel, ainda hoje posso sentir o cheiro e a vontade de tragar uma fumacinha venenosa desse cigarro. Meu problema de não ter continuado o vicio talvez tenha sido o preço, custavam o dobro, ou o triplo dos nacionais. Negócio é que quando falta cigarro, de vez em quando, todo viciado dá uma volta no quarteirão da casa e tem sempre doador da morte estendendo o maço do cigarro em oferência. Holywood, minister, arizona, free, Eu aceitava mas não gostava. Era um viciado exigente, achava os cigarros da Sousa Cruz uma merda. Aí desembolsava doloridos quinze reais numa carteira de Camel para queimá-los, vendo o meu pensamento saindo de mim sob forma de fumaça azulada.

Nem mesmo nos momentos de desespero apelava para os nacionais. Desespero financeiro, de paixão, de ódio. Mas, curiosamente, acho que foram nos melhores momentos da vida que passivamente aceitei um hollywood, free, e outros fumaceiros de felicidade triste. Devo dizer que no tempo em que eu fumava, o cigarro era ainda produto de consumo socialmente tolerável. Chaminés que se expeliam nas ruas, praças, cinemas, restaurantes, sorveterias, escolas - havia professores que em sala de aula fumavam segurando o cigarro nos dedos da mão esquerda e giz na mão direita, e às vezes trocavam os dedos e metia o giz na boca. Até mesmo nas maternidades, pais emocionados com o filho nascido, faziam o bebê engolir a primeira fumaça da vida.

A história de um cigarro pode acabar a qualquer tempo com uma pessoa, ou uma pessoa pode acabar qualquer tempo com o cigarro. Foi o que aconteceu comigo, ou com Juliana. Nesse dia, numa manhã de segunda-feira, ela tentava se concentrar nos assuntos da diretoria da escola, em volta de uma mesa, numa sala arejada cujas janelas o vento de julho batia assustadoramente de costas nas paredes. E foi numa dessas pancadas de janela que Juliana se emburacou mesa abaixo, num terrível ataque epiléptico.

Talvez o vento e seus coadjuvantes tenham contribuído com a morte da garota. Mas o delegado registrou a fumaça do cigarro do diretor, da coordenadora da escola e de outros professores do Conselho que fumavam à mesa naquele dia.

Chamado à delegacia, falei que Juliana havia saído comigo àquela noite e que eu havia dormido na casa dela. Sabia que ela sofria de epilepsia? Não senhor, ela nunca me falou. Nem comprimidos, algum remédio, o senhor nunca a presenciou ingerir alguma droga? Não senhor. O senhor, naturalmete, não é casado? Não senhor. O senhor fuma? Sim.

Ofereceu-me um cigarro, era um hollywood. Ele riscou o fósforo e aproximou a chama na ponta do cigarro.
Ela fumava?
De vez em quando, respondi.
Encontramos pontas de cigarro pela casa, uma marca estrangeira, camelo, me parece. O senhor pode comprar esse cigarro, ou melhor, o senhor fuma esse cigarro?
Camel. Fumo desse cigarro.
E ela?
De vez em quando.
Um especialista me informou que esse cigarro é muito forte, para alguém que sofre de uma doença tão grave, o senhor não acha que a prejudicaria?
Eu não sabia que ela tinha alguma doença.
O senhor tem advogado?
Não.
Esse cigarro no seu bolso é da marca caaaameloo...
Camel.

Saí da delegacia, olhei o sol baixando por trás do morro, um crepúsculo enfumaçado. Tirei o maço do cigarro do bolso, avistei um lixeiro na calçada e atirei ali o meu último Camel.


F Wilson

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