sábado, 31 de julho de 2010

sábado, 17 de julho de 2010

Cotidiano

(ilustração: google)

CIGARROS

Não sei bem como começou. Mas chegou a certo ponto do vício que eu só queria fumar cigarros importados, porque eram os melhores, eram fortes, cheirosos, sentia a brasa do cigarro sendo devorada pela tragédia do meu ser. Marlboro, John Player Special, Lucky Strike, Camel. Eram minhas marcas preferidas. Do Camel, ainda hoje posso sentir o cheiro e a vontade de tragar uma fumacinha venenosa desse cigarro. Meu problema de não ter continuado o vicio talvez tenha sido o preço, custavam o dobro, ou o triplo dos nacionais. Negócio é que quando falta cigarro, de vez em quando, todo viciado dá uma volta no quarteirão da casa e tem sempre doador da morte estendendo o maço do cigarro em oferência. Holywood, minister, arizona, free, Eu aceitava mas não gostava. Era um viciado exigente, achava os cigarros da Sousa Cruz uma merda. Aí desembolsava doloridos quinze reais numa carteira de Camel para queimá-los, vendo o meu pensamento saindo de mim sob forma de fumaça azulada.

Nem mesmo nos momentos de desespero apelava para os nacionais. Desespero financeiro, de paixão, de ódio. Mas, curiosamente, acho que foram nos melhores momentos da vida que passivamente aceitei um hollywood, free, e outros fumaceiros de felicidade triste. Devo dizer que no tempo em que eu fumava, o cigarro era ainda produto de consumo socialmente tolerável. Chaminés que se expeliam nas ruas, praças, cinemas, restaurantes, sorveterias, escolas - havia professores que em sala de aula fumavam segurando o cigarro nos dedos da mão esquerda e giz na mão direita, e às vezes trocavam os dedos e metia o giz na boca. Até mesmo nas maternidades, pais emocionados com o filho nascido, faziam o bebê engolir a primeira fumaça da vida.

A história de um cigarro pode acabar a qualquer tempo com uma pessoa, ou uma pessoa pode acabar qualquer tempo com o cigarro. Foi o que aconteceu comigo, ou com Juliana. Nesse dia, numa manhã de segunda-feira, ela tentava se concentrar nos assuntos da diretoria da escola, em volta de uma mesa, numa sala arejada cujas janelas o vento de julho batia assustadoramente de costas nas paredes. E foi numa dessas pancadas de janela que Juliana se emburacou mesa abaixo, num terrível ataque epiléptico.

Talvez o vento e seus coadjuvantes tenham contribuído com a morte da garota. Mas o delegado registrou a fumaça do cigarro do diretor, da coordenadora da escola e de outros professores do Conselho que fumavam à mesa naquele dia.

Chamado à delegacia, falei que Juliana havia saído comigo àquela noite e que eu havia dormido na casa dela. Sabia que ela sofria de epilepsia? Não senhor, ela nunca me falou. Nem comprimidos, algum remédio, o senhor nunca a presenciou ingerir alguma droga? Não senhor. O senhor, naturalmete, não é casado? Não senhor. O senhor fuma? Sim.

Ofereceu-me um cigarro, era um hollywood. Ele riscou o fósforo e aproximou a chama na ponta do cigarro.
Ela fumava?
De vez em quando, respondi.
Encontramos pontas de cigarro pela casa, uma marca estrangeira, camelo, me parece. O senhor pode comprar esse cigarro, ou melhor, o senhor fuma esse cigarro?
Camel. Fumo desse cigarro.
E ela?
De vez em quando.
Um especialista me informou que esse cigarro é muito forte, para alguém que sofre de uma doença tão grave, o senhor não acha que a prejudicaria?
Eu não sabia que ela tinha alguma doença.
O senhor tem advogado?
Não.
Esse cigarro no seu bolso é da marca caaaameloo...
Camel.

Saí da delegacia, olhei o sol baixando por trás do morro, um crepúsculo enfumaçado. Tirei o maço do cigarro do bolso, avistei um lixeiro na calçada e atirei ali o meu último Camel.


F Wilson

Valéria Tarelho



Há algum tempo, iniciei uma série de poemas de quatro patas, pelos, unhas afiadas; uns com manha, malícia, astúcia; outros mais ariscos, selvagens [ou quase isso].

Eis três "demos" dessa série [ainda sem nome, sem fim, sem pretensão de sair do campo das ideias. ao menos por enquanto]:

1


na ânsia do en_
lace dá-se
alucinante lance

passos de dança
lasso-lancinante
compasso de espera

cadência que oscila
assanha a cena
amansa a estreia

[estranha
entrega/trégua]

soletra-se
com pressa & pausa
cada sílaba suada
da "sonolépida" cilada

[a corte
pega & paga :
seu preço seu press_
ágio]

premissas de pos_
se ágil

domínio
de iris em iris in_
domada

[olh]
ares de fera o_
dores de cio
anunciam
:
núpcias em um p_
iscar de cílios

pinta
um clima[x]
na [verde em folha]
relva

no virgem ringue
aflora

o rala e rola dos linces



2


nuca ao alcance
das presas prontas

unhas de pressa
pretas patas práticas

fome indócil
tatuando no dorso
o indício da posse

perceba [& print]
a seiva do poema
em plena selva

imite [& do it]
a pegada firme
das panteras



3


a língua domesticada
estirada lambe
[lava lava lava]

lânguida preguiça [áspera]
aplica a seco
um banho de ideias úmidas
ao longo do pelo

asseio que bisa bisa bisa
reprisa tédio
visa assédio

voyeuse do auto-zelo
a lua [em fase de vírgula]
vela o palco do luto enlace

à alta madrugada
um bando de gatos [à míngua]
são alvos

de gatas bandidas



valéria tarelho

*ingerir ao som de "gata todo dia", com marina lima"


**publicado em primeira mão no Poema Dia, aos 14.05.09

Texto e ilustração extraídos do blog texturas.

quarta-feira, 14 de julho de 2010

Cotidiano

(imagem - google)

Tampas

Sempre tive problemas com tampas. Elas sempre escorregam das minhas mãos. Grandes, pequenas, de ferro, vidro ou de plástico sempre me dão trabalho. Já tentei conviver em harmonia com elas, colocando-as no buraco onde lhes cabe de fábrica. Mas não deu jeito, como crianças teimosas elas continuavam brincando comigo, escorregavam das minhas mãos e caíam nos mais indesejados lugares. Até chegar o dia que a tampa do perfume - era uma tampa bonita, como são as tampas de perfumes - me fez chegar atrasado no trabalho e o diretor da escola me reclamar, e nem adiantou eu dizer que a culpa tinha sido da tampa do perfume. O quê, tá gozando da minha cara? ele perguntou, e eu disse nada, deixa pra lá. Cheguei em casa nesse dia disposto a me vingar delas. Destampei panelas de comida, depósitos de alimento, creme para cabelo, creme de barbear, pasta de dentes. Até a tampa do vaso sanitário arranquei. Joguei tudo fora, no lixo. No outro dia de manhã, na calçada do prédio, vi o catador de lixo selecionando as de alumínio, acho que o peso do alumínio estava em alta, o coitado ia ganhar uma graninha boa. Fiquei satisfeito, pelo menos para isso as tampas serviam.

Mas isso já foi há algum tempo, antes da Amparo vir morar comigo, pois a primeira coisa que ela fez foi providenciar tampa para tudo. Quando ela chegou eu fiquei ali parado no meio da casa ouvindo ela reclamar como era que alguém podia morar numa casa sem tampa. E perguntava onde estavam as tampas das panelas. Joguei fora, respondi. Abriu a geladeira e eram garrafas dágua de boca aberta, manteiga ressecada dentro do pote, caixa de leite esburacada, copinhos de azeitona, de extrato de tomate, de doce de leite - tudo sem tampa. Pelo amor de Deus, como você consegue comer e beber isso sem tampa, onde você bota as tampas das coisas? Ela perguntou me encarando como um problema para o seu futuro ali. Jogo fora, falei.

Joga fora, joga fora. Por que jogar as tampas fora? tudo apodrece sem tampa, sabia? Onde não tem tampa tem baratas, ratos e outros bichos. E ela me olhou como se eu fosse um desses outros bichos.
Calma, falei, aqui não tem barata nem rato. É só um apartamento que não se adaptou à tampas. A empregada sempre coloca detergente nos cômodos onde os bichos costumam aparecer.

Tentei convencê-la de que as tampas alteravam meu comportamento. Algumas me deixavam constrangido, como as de alumínio que faziam um barulho desgraçado na queda, no choque com a cerâmica, o prédio inteiro ouvia, sabia que era eu, fazendo comida no almoço ou chegando de alguma festa na madrugada, com fome.
E as de plástico, não são inofensivas? Perguntou ela, irônica. E eu já estava arrependido da tampa que havia trazido para casa. Mas ela tinha uns cabelos negros e longos e lisos.

Continuei dizendo que outras me deixavam com raiva ou me atrasavam para o trabalho. A tampa do pote da margarina só caí pregada no chão, geralmente numa areinha trazida da rua pelo sapato. A da pasta de dentes sempre cai pelo ralo da pia, aí é um trabalho para desentupir a pia do banheiro. A tampa do perfume sempre me escorrega dos dedos e cai saltitando pelo quarto, indo se esconder lá debaixo da cama - uma vez, já com raiva fui buscá-la, rastejei buraco abaixo, dei umas três doloridas cabeçadas na grade de cima e voltei vitorioso, apesar da camisa e da calça amarrotadas e sujas.

Eu não fico em casa sem tampa! disse ela, virando as costas para mim, mulher manhosa.
Fazer o quê? Falei: Então - cheguei perto dela e mergulhei a venta nos seus cabelos - vamos colocar tampa nessa casa.


F Wilson

domingo, 11 de julho de 2010

Na sala de aula

Atrasado

Era uma segunda-feira, lembro, manhã de julho de provas na escola. Os alunos já estavam recolhidos em sala de aula. O diretor me esperava na entrada. Eu andava me atrasando naqueles primeiros dias de julho, acho que por conta das proximidades das férias. Mas o diretor foi educado, cercou o braço no meu ombro, elogiou-me e fez o pedido, acompanhado do gesto de levantar as mãos e medir com os dedos um tantinho.
--- Dá pro senhor chegar um pouquinho mais cedo? Ele continuava com os dedos medindo o tantinho, aquilo me desgostou.
--- Dá não, falei, como se fosse negociante.
--- Por quê, professor? Os dedos medindo o tantinho.
--- Olha, o preço é esse mesmo, e olha que não estou ganhando nada.

Dois dias depois uma autoridade da secretaria me intimou, através de telefonema, meu comparecimento a seu juízo, a determinada data e hora. Calculei, na certa o diretor havia se queixado.

Para não fugir a regra cheguei atrasado, disse a moça secretária, atrás de um computador, telefone, agenda, indiferença etc. Ela tinha uns peitos bons, o decote da blusa deixava ver. Sentei-me num banquinho e olhei umas duas outras pessoas que me faziam companhia ali naquela sala. Tinham, como eu, também cara de professor. Só que elas pareciam cansadas da vida, da profissão. Eu precisava também me olhar no espelho.
Sem me olhar, falando para o computador - acho que o tempo todo ela navegava no orkut - a garota dos peitos bons me anunciou, dizendo seu francisco a superintendente o aguarda.

Ali estava eu diante de uma super. Eu que durante a minha infância havia lido tantas revistinhas do super-homem, imitava o herói pendurando toalhas nas costas correndo pela casa do tempo, sonhado namorar a super-girl (sim, naquele tempo havia a super-moça). Ali estava eu, decepcionado com os heróis da minha infância. Nem eu havia me transformado em super, nem a super ali na minha frente apresentava nada de belo como a super-girl.

Era uma velha com cara de professora cansada da vida, da profissão. Mas também com cara de burocrata que precisava complementar seus dias de trabalho para aposentadoria. Acho que ela não foi com minha cara de aluno rebelde.
--- Muito bem, senhor francisco, há uma reclamação que o senhor chega atrasado para o trabalho. O que está acontecendo? Não dá pro senhor chegar um pouquinho mais cedo?
Ela levantou a mão e mediu com os dedos o tantinho. Aquilo me enfureceu, mas eu estava diante da super, tinha que manerar, falar para convencer.
--- É que no percurso para a escola tenho que fazer uma parada na padaria para comprar uns pãezinhos, merenda no recreio da escola, e às vezes o carro guincha sem sair do lugar e é trabalho para empurar.
--- Se o senhor tem de comprar seus pãezinhos, é só sair um pouquinho mais cedo de casa. Então, não dá pra chegar um pouquinho mais cedo na escola?
Ela parecia uma estátua com os dedos das mãos levantadas, gesticulando a abertura do tantinho.
--- Dá não senhora, respondi.
---Por quê? Ela se adiantou sobre a mesa aproximando os dedos velhos na minha cara.
--- Olha, o preço é esse mesmo, e olha que não estou ganhando nada!


Saí.

Descontaram trezentos reais do meu salário de julho, ano passado.


F Wilson


sábado, 10 de julho de 2010

Alô, Mari!


(Fotos - google)

De uns dias pra cá ando encucado com o Tempo, que não é só um, são três. Num jogo de futebol não disputam três times, então deixo um na reserva. Mas qual? Todos querem jogar!

O tempo presente se acha preparado, tem a bola nos pés e o relógio no braço - pode controlar o jogo; o tempo passado perdeu mais do que ganhou - tá desacreditado; e o futuro é de jovens - precisa do passado.


Então, torcer para Holanda, amanhã; ou para a Espanha.


Beijo, prima!