sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

Caetano Veloso

(Caricatura de Alan Souto Maior - Selecionada no 22º Salão de Humor do Piauí - 2004)

Caetano Veloso - Ilha
 
Miles Davis é um dos maiores gênios do jazz, e eu me considerava pior do que me considero hoje
 
Leio e ouço muita gente falando sobre o disco de Gal. O que me faz muito feliz, sobretudo quando prevejo que, depois de passar um tempo ouvindo “Neguinho”, geral vai passar a ouvir “Miami maculelê” (amo ver a imagem de São Dimas numa versão que rola no YouTube). Sendo que, em casa, sozinhas, algumas pessoas especiais vão ouvir dezenas de vezes “Recanto escuro”, “Tudo dói” ou “Autotune autoerótico”. E outras, mais especiais ainda, “Sexo e dinheiro” e “Madre Deus”. As mais amadas ouvirão o CD todo umas duas vezes por dia. Todo esse otimismo espontâneo — e independente da marra falsa da “Folha de S.Paulo” (que estampou chamadas querendo parecer irreverentes, mas que eram apenas mal escritas) — é justificado. Não preciso nem explicar. Há muita dor e prazer na história e na pré-história desse disco.

Mas, além de dedicar a Marcelinho da Lua, Gonzaguinha (pelo “Lindo lago do amor”), Marcos Valle, KL Jay, Céu, Cibele, Fernanda Porto, The Twelves e tantos outros cujos nomes não me vêm à mente depois de 12 horas trabalhando num tema de Meredith Monk com Pedro Sá no Monoaural — e de não cansar de repetir os agradecimentos a Kassin (cujo disco solo precisa ser ouvido por todos) —, quero falar aqui sobre a foto que está na contracapa do CD.

Foi em 1970. Eu e Gil estávamos exilados em Londres, e Gal foi nos visitar, levando Arnaldo Brandão, cuja festa de aniversário de 60 anos, semana passada, sofri muito por perder (eu estava no turbilhão de viagens que me arrastou neste longo fim de ano). Arnaldo era um cara tão lindo aos 18 que eu fiquei totalmente hipnotizado (e com quem vim a tocar na Outra Banda da Terra, não porque ele fosse lindo, mas porque Vinicius Cantuária me convenceu de que ele era, como de fato era, o cara para tocar baixo numa banda que ia inaugurar o slap nas gravações brasileiras, fato ignorado pelos críticos, que então pensavam que “Muito” era pura bagunça). O segundo festival da Ilha de Wight se anunciava. O primeiro, a que eu tinha assistido, havia sido encerrado com a volta de Bob Dylan depois do acidente de moto. Esse agora o seria por Jimi Hendrix. Liderados por Gil (fechado com Cláudio Prado, que falava inglês tão bem que os ingleses o tomavam por um nativo), fomos acampar na ilha. Uma artista plástica francesa trouxera para nossa barraca uma obra que consistia num enorme vestido vermelho de plástico, uma imensa saia para ser usada coletivamente, as partes superiores saindo dela como chaminés.

Alguém da organização do festival ficou conhecendo Cláudio e terminou convidando esse grupo esquisito de compositores e músicos brasileiros, mais a arte da francesa, para se apresentarem no palco do festival. Assim fizemos. Gal subiu ao palco conosco. Arnaldo também. A turma da francesa parecia um animal elegante de muitas cabeças e troncos. (No documentário sobre a Tropicália que está para ser lançado, há uma cena em que apareço cantando “Shoot me dead” acompanhado por Gil.) No fim da apresentação, a turma que vestia o plástico vermelho tirou a roupa. Um jornalista da “Rolling Stone” americana veio me procurar depois e me perguntou: “Quem são vocês?!” Na resenha do primeiro dia do festival, eles disseram que os brasileiros estavam entre as melhores coisas, acima da “psychedelic musak”.

Ganhamos botões dourados que nos davam direito a assistir aos shows do chiqueirinho reservado para a equipe de filmagem. Me lembro de ter visto um show deitado no chão ao lado de (e conversando com) David Gilmour. Por causa desses botões, Gil e eu pudemos atender prontamente ao chamado do apresentador: “Compositores brasileiros Gilberto Gil e Caetano Veloso, Miles Davis os chama ao backstage.” Era Airto, que tocava com Miles. Mas Miles me agarrou pelos ombros e ficou me fitando por longo tempo, com Airto pulando e gritando em volta. Sussurrando, Miles me disse: “Quero ouvir sua música”. Parecia uma paquera. Eu não queria mostrar minha música a Miles Davis: ele é um dos maiores gênios do jazz, e eu me considerava pior do que me considero hoje.

Pois bem, Gal, no auge de sua beleza de vanguarda, tomou uma mescalina e ficou apavorada p o rq u e s e v i a com segundos de antecedência, ou seja, se via no futuro próximo, coisa para ser estudada pelos neurocientistas do livro de Gianetti, mais do que pelos místicos que pensam que já sabem qual é o lance. Mas a sincronicidade — esse conceito de Jung que atraiu Sting e Augusto de Campos (para não falar na torcida do Flamengo) — fez uma aparição gloriosa no nascedouro de “Recanto”. Quando eu decidi que faria o disco, recebi um e-mail de David Linger, que mora em São Francisco e nada sabia dos meus planos, com uma fotografia em que Gal e eu aparecemos na Ilha de Wight. Fiquei impressionado. Quis essa foto na contracapa do CD. Falei com Gilda Midani, a quem eu convidara para fazer a capa e, apesar de problemas de liberação de direitos por parte da moça americana que tirou a foto (David a localizou), meu sonho terminou se realizando. Gal, eu e toda a turma vimos Hendrix, Leonard Cohen, The Doors, Emerson Lake & Palmer, Joni Mitchell, uma pá de gente. E bem de perto. Era a cena da época. Sabíamo-nos dentro dela, atravessados pela hegemonia anglo-americana da cultura de massas. Mas tínhamos (consciente ou inconscientemente) de nossa provinciana realidade uma visão que apontava — e ainda aponta — para grandezas que superariam (superarão?) a estrutura dessa cena já engessada. 


Jornal O Globo, 18/12/2011 

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