terça-feira, 31 de julho de 2012

Conto@otnoC


“Fernando Pessoa em flagrante delitro“ (Dedicatória de F.P. a Ophélia, 1929) - Foto de autoria desconhecida.



Por J. L. Rocha do Nascimento


UM TARÂNTULA NO NINHO DOS POETAS


Peço uma cerveja. Quente. Só tem copo descartável, diz o garçom com aura de poeta. No primeiro gole, desisto. Peço um uísque. Não tem gelo, diz o barman, agora com mais aura de garçom do que de poeta. Fazer o quê? Bebo de um gole só. Puro álcool. Outro cavalo paraguaio, eu peço. O garçom, com o olhar de reprovação e postura de proprietário do estabelecimento, diz que estou enganado, o uísque é legítimo, selado, e que se eu quiser tenho que comprar a ficha antes. Não esquenta, cavalo paraguaio é um poema que estou trabalhando.

BR-3, o nome da banda, toca Voodoo Child. O vocalista anuncia que o microfone está à disposição de todos. Os bardos fazem fila, começam a declamar. O rio é o mote. Uma poetisa com os cabelos desgrenhados agarra o microfone e eu temo pela sua sorte. Gesticulando-se de forma desordenada, tal com uma aranha peçonhenta bêbada, tentáculos para todos os lados, as pernas parecendo duas palafitas movendo-se em areia movediça. Começa a berrar: preciso urgentemente fazer um poema sobre o rio de minha cidade. Na estrofe seguinte, troca a cidade pela aldeia. O pobre do guitarrista faz malabarismos para acompanhar o ritmo ora estridente ora sonolento. Repete os mesmos versos até cansar. Ao final, joga o microfone para um dos lados e se despede diante de efusivos aplausos. Dirige-se a uma mesa, onde lhe aguarda um grupo animado de jovens, um deles escreve um poema num rolo de folhas duplas de papel higiênico. No meio do caminho ela arranca um copo de cerveja das mãos de um, que apenas olha. Mais à frente, tropeça numa garrafa jogada pelo chão, quase cai, mas consegue sentar-se num banquinho de madeira e grita: garçom, mais uma, que eu preciso escrever urgentemente um poema sobre o rio da minha cidade.

Já vou pra quarta dose. E parece que ganhei a simpatia do garçom-poeta. Mandou comprar um pacote de gelo e água de coco, mas me fez prometer que tomaria pelo menos mais 03 doses.

O tempo passa. Os poetas continuam se revezando. O tema de sempre. Tem um que canta a beleza do rio coberto de aguapés. Ainda bem que não tem nenhum ambientalista por perto. Deixem o rio em paz, resmungo.  Peço uma caneta e um pedaço de papel e escrevo:
Cavalo paraguaio
Deus!, Deus!, por que me persegues?
Por que não me dissestes que eu nasceria para a morte?
Por que me destes um coração fraco?
Por que tenho que me deitar neste leito de Procusto?

Meu Deus! Isso não é um poema, é um pedido de socorro, reflito. E o que é que o dna do cavalo tem a ver com a ira divina, com a frágil condição humana? Nunca vou ser um poeta, concluo desolado.

A oitava dose eu tomo com gelo e água de coco. O dono do bar, poeta nas horas vagas como ele mesmo diz, e dublê de garçom aos finais de semana, agora é um poço sem fundo de sorrisos para comigo. Também, conseguiu recuperar o investimento e já tá no lucro.

Lá pelas tantas, me faz um convite. Quer que escrevamos um poema a quatro mãos. Lisonjeado, agradeço e gentilmente recuso. Percebo que não gostou e insiste. Apelo para o seu instinto patrimonialista e digo-lhe que ainda tenho reserva para mais duas doses, desde que ele guarde segredo do que vou dizer e não se ofenda. Pode falar, ele diz. Não sou poeta, sou contista, digo baixinho, olhando firme nos seus olhos, certificando-me, antes, de que não há ninguém por perto. A reação foi imediata. Deu dois passos para trás, quase cai. Seus olhos cospem fogo. Por um momento pensei que ele iria acionar os seguranças ou resolver a parada com as próprias mãos. Comecei a suar frio. À minha volta, pareceu-me que todos me olhavam com ar de rejeição. Deve ser o efeito do cavalo paraguaio, pensei.

De repente, para minha surpresa, meu interlocutor interrompe-me os devaneios, dizendo: tudo bem, você é um bom cliente. Sirvo-te mais duas doses, sem gelo e sem água de coco, mas com uma condição: nunca mais me volte aqui, entendeu?

Ao final da décima dose, me sentindo um estranho no ninho, saí dali como entrei, sem ser notado, e decidido a escrever este conto.



*Texto publicado no blog Confraria Tarântula - domingo, 29 de julho de 2012.




Um comentário:

Luiz Filho de Oliveira disse...

Nossa, como esse bar é "familiar"! É a cara da nossa cidade, onde "literchatos" querem brigas com os seus pares e ímpares literários. Falta respeito, ao menos, pela obra dos outros. Saída nobre, a sua, meu caro tarântula, pois esse era um ninho de cobras.