sábado, 18 de setembro de 2010

crônica

Cartão de crédito

Quinze anos atrás o cartão de crédito que utilizamos em quase todas as aventuras  econômicas hoje em dia não era tão utilizado, ou melhor, era coisa de classe média pra cima. Mas apesar disso, alguns vaidosos trabalhadores teimavam em possuir o cartão. Faziam suas compras, comiam, bebiam, se divertiam. Era bom a sensação de ter a vida, naquele momento,  sem pagar. Mas depois chegava o correio com a fatura. Era uma dor de cabeça, difícil aceitar os juros cobrados pelo cartão. Sem o dinheiro para pagar o total, todo cartão limita um pagamento mínimo para a dívida. Ufa, que alívio, até que os bancos compreendem as dificuldades financeiras do cliente. Pelo menos é esse o pensamento do consumidor primário que adquiriu o cartão e andou gastando além da conta.

Pois há quinze anos era eu exibindo um cartão, amolando as passagens estreitas das maquininhas. Supermercados, choppins, livrarias, pizzarias, um chopinho aqui, outro ali. Boleto chegava, reclamava da dor mas pagava. A questão é que eu nunca pagava o total - e os bancos gostam disso. Pagava uma parcela e deixava o resto para o tempo.  É quando o banco aproveita o cliente desmaiado de quatro e mete  sem dó, com os juros todos oficializados pelo Central.

Dívida do cartão crescendo, outras despesas obrigatórias à vista. Interromper essa sangria, só um jovem muito equilibrado. Renunciar aos prazeres de solteiro. Bem que tentei, inútil. Foi quando recebi o aviso.

A contadora fez as contas do período e me deu o valor da indenização trabalhista. Razoável. Fiz a lista das dívidas preferenciais, pagar primeiro os fornecedores que tem cara.  Deixei de fora o cartão, que é só bandeira. Dinheiro curto, sem perspectiva de emprego a curto prazo, cortei despesas. Ficava em casa aos finais de semana bebericando uma Kaiser - mais barata; ou umas dosinhas de caninha 51, ouvindo blues, namorando a Geisse. A conta do cartão crescendo. Mandei-a à PQP. Que questionassem meu nome ao SPC, ao Cerasa, à Polícia Federal... qual instituição ia mesmo gastar inutilmente dinheiro em minha causa?

Por falta de pagamento, cortaram tudo em minha casa: luz, água, telefone, moral. Luz e água um rapaz que fazia “bico” ligava rapidinho por dez reais, afinal, para alguém que espera viver um pouco mais é essencial a luz e a água.

Aí o carteiro, que sempre chegava inconvenientemente às duas horas da tarde, quando eu dormia numa rede na sala,  gritava CORREIOS! Era mais uma fatura vencida do cartão. Eu rasgava as extremidades do envelope bocejando, e via a conta crescendo num valor que eu nunca ia ter condições de pagar. Era uma dívida que havia já se acumulando em seis meses, cerca de três mil reais. Pago nada!

O banco descobriu o número do meu celular e me ligou.
— Sr. Francisco?
— Sim.
— Aqui é do banco ..., Sr. Francisco,  o senhor foi um dos sorteados na nossa promoção. Sua dívida será reduzida no valor de dois mil e quinhentos reais. Mas essa promoção só é válida por vinte e quatro horas, Sr. Francisco, depois o valor voltará ao normal, o senhor se interessa?
— Pago nada!
— De qualquer forma, Sr. Francisco, o banco vai aguardar o prazo. Boa tarde, e desculpe pelo incômodo de lhe acordar.

Passado um mês, outra promoção, sempre às duas horas da tarde.
— Sr. Francisco?
— Sim.
— Aqui é do banco..., Sr. Francisco,  o senhor foi um dos sorteados na nossa promoção. Sua dívida será reduzida no valor de dois mil reais. Mas essa promoção só é válida por vinte e quatro horas, Sr. Francisco, depois o valor voltará ao normal, o senhor se interessa?
— Pago nada!
— De qualquer forma, Sr. Francisco, o banco vai aguardar o prazo. Boa tarde, e desculpe pelo incômodo de lhe acordar.

Durante seis meses insistiram na promoção, até que desistiram, pelo menos dos telefonemas, pois cartas de cobradores e de advogados me ameaçavam diariamente. O carteiro que o diga, pois me olhava com raiva, dizia que carta de banco era de urgência e que percorria cinco quilômetros todos os dias do bairro vizinho só para me atender, entregar uma única carta? Questionava ele. Eu o olhava, suado como chaleira, encostado na sua bicicleta amarela. Fazer o quê, eu não tinha dinheiro para pagar o banco e aliviar o sofrimento dele. Ainda disse: olha, você não precisa vir entregar essas correspondências para mim, dê um fim nelas no meio do caminho, eu não preciso delas mesmo. Mas ele respondeu que jamais faria o meu pedido, tinha família e precisava do emprego.

Um ano depois e eu balançando na rede das duas da tarde, frente à tv. Eu já conhecia todos os horários da televisão, todas as emissoras. Jornais, novelas, programas de auditório. Todos grandes merdas. Só prestava atenção aos jornais. Celular tocando:
— Sr. Francisco?
— Sim.
— Sou fulano de tal do banco talco, tudo de bem com o senhor?
— Sim.
— O senhor foi contemplado com um grande desconto da sua dívida. Basta o senhor fazer um depósito de mil reais no prazo de vinte e quatro horas que sua dívida estará liquidada, seu nome será retirado do spc, do serasa, da polícia federal...
— Pago nada!
— De qualquer forma, Sr. Francisco, o banco vai aguardar o prazo. Boa tarde e desculpe pelo incômodo de lhe acordar.

. . .

Dois anos depois minha situação financeira melhorou, voltei a trabalhar. Voltara a fazer planejamentos  de consumidor. Comprava coisinhas, saía para alguma diversão, bebia escrupulosamente um chopinho, olhava as pessoas,  calculava a grana. Pagava à vista. O cartão esquecera de mim, não sem me ofender no último telefonema: O senhor parece ter cara de “velhaco”!

Quando chegaram as boas chuvas de janeiro, eu voltava para casa à noitinha, depois do trabalho. Certa vez entrei a casa e pisei em várias correspondências que o carteiro metia por baixo da porta. Entre as cartas estava lá, uma do banco, com uma mensagem do carteiro, escrita a lápis, na capa do envelope. Dizia estar torcendo por mim. Abri o envelope e o banco talco me fazia uma proposta tímida. Que eu pagasse o valor de oitenta reais, podia ser parcelado em quatro vezes, ou entrasse em contato com o banco para prolongar o prazo, e que após o pagamento da primeira parcela meu nome seria retirado do spc, do serasa, da polícia federal etc.

Fiz o pagamento, à vista.
Não é que limparam mesmo meu nome?

F wilson   

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