sábado, 14 de agosto de 2010

Conto

(imagem - google)

A História de Zé Viúvo - Parte I

(Para Antonio Meruóca, meu pai, que me contou essa história)

A chegada

A rotina da casa onde Zé Viúvo, sua mãe - a velha Zequinha, e o irmão Chico Novo se alterou quando Zé-Du-Carmo chegou. Era noite de um sábado sem lua, sem vento, e o calor pregava a camisa no peito magro do filho desajustado que de surpresa aparecia ali. Cigarro no canto da boca, mala na mão, com a outra empurrou, com jeito de quem ainda conhecia,  primeiro a meia-porta de cima. Depois enfiando a mão mais abaixo encontrou o ferrolho da outra meia-porta. O barulho fez a velha deixar a cozinha onde, à mesa, o inseparável Chico aguardava a janta. Reconheceu-o sem vacilo, mas depois do abraço lembrou do impasse que Zé-du-Carmo podia provocar na casa, mas Deus havia de colocar paz entre os três irmãos, pensou. Quando Chico Novo o cumprimentou, com a frieza das lembranças carregadas pelo tempo, Zé-du-Carmo colocou a mala num canto da sala, pediu um copo dágua e uma rede à mãe. Dormiu o dia seguinte, só levantando com o barulho do caminhão  estacionando frente a casa. Era Zé Viúvo chegando das viagens que fazia.

O caminhoneiro

Viúvo era uma sujeito muito requisitado pelos comerciantes, ambulantes  que vendiam suas mercadorias nas cidades da região de Picos. Na bolé do chevrolet acomodava as mulheres; os homens sentavam em estrados adaptados na carroceria do caminhão, vigiando suas mercadorias. Não reclamavam do desconforto entre sacos de goma, farinha, feijão, milho; nem do mau cheiro dos animais - porcos, bodes, galinhas etc. E era muitas vezes na cabine do caminhão em movimento que Zé Viúvo contactava discretamente suas aventuras amorosas, entre uma marcha e outra, alegrava a comadre passageira com uma frase sugestiva. E nenhum marido jamais desconfiou do decoro daquele motorista amigo de todos. Estava sempre lúcido. Bebia um refrigerante nos bares  onde seus passageiros repetiam uma cachaça, uma cerveja - despesa puxada por uma pequena parcela do lucro das suas vendas. Era uma fera mansa; o bote, um instinto domado.

O encontro

Não viu a mãe à porta, decerto doente, pensou. Ao se aproximar o cheiro do fumo colocou-o em alerta. Então ele voltou, baixou a cabeça no esforço de subir  meia-dúzia de degraus até a entrada da casa.
Eram do mesmo tope. Três homens não tão altos nem tanto fortes. Não fosse o bigode de Viúvo, seriam confundidos pelas ruas de tão parecidos. Por um minuto ninguém falou, dava pra ouvir o suspiro da velha no quarto contando caroços do terço em oração. Foi Chico Novo quem quebrou o gelo.
— Zé-du-Carmo chegou ontem do Pará. Vai passar uns dias com a gente.
Os contrastes vacilaram, mas apertaram as mãos. De certo, a fadiga e o cansaço de um, a rede censurável do outro, fizeram a noite hostil, mas também impotente.

Zé-du-Carmo

Em 1972, às seis horas de uma manhã de segunda-feira, Zé-du-Carmo chagou a sua casa, depois de uma farra na rua dos cabarés. Abriu a porta discretamente para não ser ouvido e foi banhar no chuveiro improvisado no quintal. As páginas policiais do jornal não teriam noticiado se a porta dos fundos naquela manhã não tivesse gerado um rosto estranho que fez o sabonete escorregar das mãos do ainda então jovem Zé-du-Carmo.
Repentinamente lúcido, ele vestiu a cueca e, sem pena da ratinha encolhida num canto da sala, sua mulher, espancou-a sem dó. As pancadas mais silenciosas que o mundo traído já ouvira. Depois armou-se de uma pequena pistola, montou na bicicleta e sai em perseguição ao herói passivo. Cinco quarteirões de pontas retorcidas, dezena de pedaladas sobre a moral.  A  vinte metros de distância, sacou da pistola,  mirou, sob velocidade da bicicleta, o indivíduo. Ali perto, uma cambada de alunos que aguardavam do lado de fora a escola abrir, presenciaram dois balaços, um sujeito gritando com sangramento nas nádegas e outro pedalando rua acima, de cuecas, com uma pistola na mão.

A prisão

Ouvidas as testemunhas o delegado providenciou diligências em busca do culpado. Com gasolina custeada pela família da vítima, a viatura seguiu de Picos a cidade de Jaicós. Na praça avistaram o velho chevrolet. Revistado, encontraram no porta-luva uma pistola, no que o delegado sacou o pente e constatou a falta de duas balas. O passo seguinte foi localizar o fugitivo.
A princípio, Zé Viúvo pensou que aquela abordagem policial na casa da amante, a professora Ritinha, fosse retaliação do marido dela que se encontrava viajando. Só na delegacia pode saber da acusação. A partir daí a realidade perde sentido e tudo se torna sintético na vida de Viúvo. Seu depoimento não entrou em contradição com o fato. Havia partido de Picos a Jaicós às seis e meia daquele dia.
— Antes de viajar, onde esteve?
— Em casa, tomando café.
— Quem preparou o café?
— Eu mesmo.
— Quem mais mora na sua casa?
— Minha mãe e um irmão, o mais novo.
— Estavam na mesa?
— Não, dormiam.
— E essa arma, é sua?
— Sim. Levo nas minhas viagens. Onde encontraram?
— Eu faço as perguntas. Sabe informar das duas balas que faltam no pente?


A condenação

A necessidade de manter-se na vida é mais forte do que o isolamento acerca dessa vida. Du-Carmo assistiu passivamente à condenação do irmão. Na saída do tribunal, levantou os olhos e o viu ali de pé, a sua frente, num fragmento de espera, algemado. Encarou com olhos artificiais toda a verdade que Zé Viúvo já sabia.

F wilson

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